sexta-feira, 10 de abril de 2015

Morre a crítica teatral, brasileira: Barbara Heliodora!


Morre a maior especialista em Shakespeare do Brasil; crítica teatral Barbara Heliodora, aos 91 anos; estava internada desde o fim de março; o velório será realizado neste sábado, no Memorial do Carmo, no RJ.







A crítica teatral Barbara Heliodora, considerada a maior especialista em Shakespeare do Brasil, morreu às 5h da manhã desta sexta-feira. Ela estava internada no Hospital Samaritano, na Zona Sul do Rio, desde o dia 23 de março. 


Em novembro, recebeu alta do mesmo hospital após passar mais de uma semana internada com suspeita de pneumonia.
Barbara Heliodora deixa três filhas, de dois casamentos, e quatro netos. O velório será realizado neste sábado, a partir de 8h, na Capela 1 do Memorial do Carmo, no Rio — a cremação está marcada para 15h, no mesmo local.





Uma espécie de tensão silenciosa se instalava quando ela chegava ao teatro, como se anunciasse: Barbara Heliodora, a grande dama da crítica teatral brasileira, chegou. Era fácil distingui-la. Trazia os belos cabelos brancos sempre bem penteados, os óculos generosos bem equilibrados sobre o nariz afilado, a postura ereta. Parecia uma senhora sorridente inglesa, daquelas que observam com prazer e rigor o chá servido em finas xícaras de porcelana. A alusão à Inglaterra não é gratuita. Barbara Heliodora estava entre as maiores especialistas (e tradutoras) na obra do mais celebrado dos autores ingleses, William Shakespeare.


O país acaba de perder a inteligência arguta, o humor ferino e a sinceridade dolorosa de Barbara Heliodora, que marcou sucessivas gerações com suas críticas afiadas — publicadas de 1986 a 2014 no Segundo Caderno do GLOBO.


Seu estilo inconfundível, sem papas na língua, a tornou o nome mais temido da crítica artística contemporânea, o que lhe rendeu algumas brigas e outras tantas polêmicas públicas. Entre as mais virulentas, está a contenda com o diretor Gerald Thomas, que chegou a proibir sua presença em seus espetáculos. Ulisses Cruz, em 1996, barrou-a à porta do teatro, na estreia de sua montagem de “A dama do mar”, de Ibsen. Mas nem frases como “meu pobre Shakespeare sofre mais um triste golpe nessa bobajada insana”, ou “é um crime lesa-Molière; se houve direção, ela é um desastre” expressam o máximo de seu desagrado: “Às vezes é um verdadeiro horror, muito pior do que escrevo nos textos. Como é que não percebem que estão apresentando tamanha porcaria?”.


O diretor Henrique Tavares criou, inspirado em sua figura, “Barbara não lhe adora”(1999), comédia que extraía graça da figura do crítico famoso e rigoroso. “A crítica condescendente é um engano”, costumava dizer Barbara.


Diretores e atores do teatro carioca sabem bem disso. E, concordando ou não com suas análises, ninguém ficava indiferente ou deixava de dar valor à atenção e ao cuidado da análise da veterana especialista — fosse à qualidade da iluminação ou aos detalhes do cenário. Nos últimos anos, mesmo com idade avançada, e já debilitada pelas sucessivas pneumonias que acabaram por vencê-la, Barbara mantinha uma rotina profissional impressionante, assistindo de quinta a domingo a espetáculos para todos os gostos e de todos os níveis: de iniciantes a consagrados nomes da cena teatral.





SHAKESPEARE E FLUMINENSE, PAIXÕES DESDE A INFÂNCIA

Nascida no Rio de Janeiro em 29 de agosto de 1923, Heliodora Carneiro de Mendonça ganhou o primeiro nome pelo qual ficou conhecida após ser batizada. Filha de Marcos Carneiro de Mendonça, historiador e goleiro-galã do primeiro time do Fluminense e da seleção brasileira, e da poeta Anna Amélia de Queiroz, herdou do pai a paixão pelo futebol e pelo time das Laranjeiras, e da mãe o amor por Shakespeare — foi ela que, lhe deu, quando tinha 12 anos, uma edição completas das obras do bardo, em inglês.


Uma das mais importantes e respeitadas pesquisadoras do teatro brasileiro, Barbara Heliodora iniciou a carreira profissional como crítica de teatro em 1958, no jornal “Tribuna da Imprensa”. No ano seguinte já assinava uma coluna especializada em artes cênicas no “Jornal do Brasil”, onde suas rigorosas e bem fundamentadas análises passaram a exercer considerável influência na cena teatral carioca e na modernização da crítica especializada.


Integrante e uma das líderes do Círculo Independente de Críticos Teatrais, Barbara atuou como crítica até 1964, quando se afastou do “Jornal do Brasil” para assumir a direção do Serviço Nacional de Teatro (SNT), cargo que exerceu até 1967. Daí em diante, dedicou-se integralmente ao ensino. Como professora do Conservatório Nacional de Teatro e também do Centro de Letras e Artes da UniRio, lecionou História do Teatro, entre outras disciplinas, até a sua aposentadoria, em 1985.


Apesar de afirmar que nunca nutriu verdadeiro desejo em se tornar atriz — “o ator tem que ter um grande prazer em pisar no palco. E eu não tenho” —, em 1948 ela assumiu o papel da Rainha Gertrudes, em “Hamlet”, mas teve de ser substituída ao saber que estava grávida da filha Patrícia. Barbara foi substituída por ninguém menos que Cacilda Becker. Dez anos mais tarde, ela voltaria a atuar em peças do Tablado, espaço de referência idealizado e dirigido por Maria Clara Machado.


Nos anos 1970, ela deu uma guinada na sua carreira como teórica, tendo seus primeiros livros publicados. O primeiro deles, “Algumas reflexões sobre o teatro brasileiro” (1972). Em 1975, como acadêmica da USP, defendeu a tese de doutorado “A expressão dramática do homem político em Shakespeare”, publicado posteriormente em livro.


Ao aprofundar seus estudos sobre Shakespeare, Barbara se tornou referência internacional sobre o mais importante autor da dramaturgia universal, tendo representado o país em eventos internacionais e publicado ensaios em publicações conceituadas, como o Shakespeare Survey, na Inglaterra. O repertório intelectual acumulado sobre o autor a transformou, pouco a pouco, numa das principais tradutoras da obra de Shakespeare, tendo assinado a versão brasileira para clássicos como “A comédia dos erros”, “Sonho de uma noite de verão”, “O mercador de Veneza”, “Noite de Reis”, “Romeu e Julieta”, “César e Cleópatra” e “Rei Lear”.




TRADUTORA DE OBRAS FUNDAMENTAIS

Suas muitas conferências sobre o assunto foram reunidas no livro “Falando de Shakespeare”(1997). Anos mais tarde, Barbaralançou outro volume dedicado ao bardo, a coletânea de ensaios “Reflexões shakespearianas” (2004). Em 2000, a convite da Academia Brasileira de Letras (ABL), Barbara escreveu “Martins Pena, uma introdução”, sobre um dos pais da dramaturgia brasileira.


Tradutora de obras teóricas fundamentais da História do Teatro, como “O teatro do absurdo”, “A anatomia do drama” e “Brecht: dos males o menor”, todos de Martin Esslin, além de “Shakespeare”, de Germaine Greer, Barbara voltou ao exercício da crítica teatral em 1986, na revista “Visão”, e logo depois se estabeleceu como a principal crítica teatral do jornal GLOBO, cargo que exerceu ininterruptamente até janeiro de 2014, quando anunciou a sua aposentadoria e foi substituída pelo colega de profissão Macksen Luiz.


Mas ao deixar a crítica teatral, ela não interrompeu seus trabalhos. Continuou a receber em casa alunos de seu grupo de estudo sobre Shakespeare e a escrever e a publicar livros. Em 2013 publicou “A história do teatro no Rio de Janeiro” e “Caminhos do teatro ocidental”; em 2014, teve fôlego para lançar “Shakespeare: o que as peças contam — Tudo o que você precisa saber para descobrir e amar a obra do maior dramaturgo de todos os tempos”.


Como diretora teatral, Barbara assinou montagens como “Comédia de todo mundo”, de Eudnyr Fraga. Em 1999, ela assinou o texto e a direção do espetáculo “Um homem chamado Shakespeare”, e também dirigiu “A Rússia de Tchekov”.


Fonte: O GLOBO